domingo, 30 de junho de 2013

AUTOANÁLISE



Na doutrina freudiana e na história do movimento psicanalítico, a situação da autoanálise
sempre foi tão problemática quanto a da cientificidade da psicanálise. Essa nova “ciência”,
inventada por Freud, realmente se caracteriza pelo fato de dever sua existência aos
enunciados de um pai fundador, autor e criador de um sistema de pensamento.

Como assinalou Michel Foucault (1926-1984) numa conferência proferida em 1969, é
preciso, nesse contexto, estabelecer bem a diferença entre a fundação de um campo de cientificidade, caso em que a ciência se relaciona com a obra do instaurador como o faria com coordenadas primárias, e a fundação de uma discursividade de tipo científico, através da qual um autor instaura em seu próprio nome uma possibilidade infinita de discursos, passíveis de ser reinterpretados. 

No primeiro caso, o reexame de um texto (de Galileu ou Darwin, por exemplo) altera o conhecimento que temos da história do campo em questão (a mecânica, a biologia), sem modificar o campo em si, ao passo que no outro caso dá-se o inverso: o reexame do texto transforma o próprio campo. Desenvolveu-se um debate interminável, nessa perspectiva de uma distinção entre ciência “natural” e discursividade, sobre a questão não da auto-análise como investigação de si por si mesmo, mas como momento fundador, para o próprio Freud e, portanto, para o freudismo, de um campo de discursividade: o da psicanálise, sua doutrina e seus conceitos. 

A questão da auto-análise como investigação de si por si mesmo foi resolvida desde muito cedo pelo movimento psicanalítico. Em 14 de novembro de 1897, numa carta a Wilhelm Fliess, Freud declarou: “Minha autoanálise continua parada. Agora compreendi por quê. É que só posso me analisar servindo-me de conhecimentos objetivamente adquiridos, como em relação a um estranho. A verdadeira autoanálise é impossível, caso contrário já não haveria doença. Como meus casos têm me criado alguns outros problemas, vejo-me forçado a interromper minha própria análise.” Essas reservas incitaram Freud a tomar seus discípulos em análise, quer para que se tratassem como verdadeiros doentes, quer para que se tornassem psicanalistas. Estes, em seguida, instauraram os princípios gerais da análise didática e da supervisão, que posteriormente permitiriam dar esteio ao avanço da profissão.
Em conseqüência disso, a auto-análise como investigação de si mesmo foi banida dos padrões da formação, a não ser como prolongamento da análise pessoal.
Em situações excepcionais, Freud interessou-se por algumas tentativas de autoanálise,
como mostra seu comentário de 1926 sobre um artigo de Pickworth Farrow dedicado a uma
lembrança infantil que remontava aos seis meses de idade: “O autor [...] não conseguiu
chegar a um acordo com seus dois analistas [...]. Assim, voltou-se para uma aplicação conseqüente do processo de autoanálise de que me servi, no passado, para analisar meus próprios sonhos. Seus resultados merecem ser levados em consideração, em virtude de sua originalidade e de sua técnica.”

Depois de haver definido solidamente os princípios da análise didática, a comunidade
freudiana aceitou a ideia de que somente Freud, como pai fundador, havia realmente praticado uma auto-análise, isto é, uma investigação de si mesmo não precedida de uma análise. Por isso, ela desenhou um quadro de filiações em que o mestre ficou ocupando um lugar original: ele se havia “autogerado”. Assim, a auto-análise deixou de ser uma questão teórica e clínica para se tornar a grande questão histórica da psicanálise.

Passou-se então a indagar exclusivamente sobre a autoanálise de Freud, e portanto, sobre o
nascimento e as origens da doutrina psicanalítica. 
Freud mudou de opinião várias vezes quanto à duração dessa autoanálise, mas, ao tomarmos conhecimento de suas cartas a Fliess, constatamos que ela se desenrolou entre 22 de junho e 14 de novembro de 1897. Durante esse período crucial, o jovem médico abandonou a teoria da sedução em favor da teoria da fantasia e fez sua primeira interpretação do Édipo de Sófocles.Tal como Freud, os diferentes comentadores
alongaram a duração dessa experiência original, fazendo-a iniciar-se em 1895, com a publicação dos Estudos sobre a histeria, e situando seu fim em 1899, no momento em que foi
lançada A interpretação dos sonhos. Eles sublinharam que o período de junho a novembro
de 1897 correspondeu a uma autoanálise “intensiva”.

De qualquer modo, como salientou Patrick Mahony, uma coisa é certa: essa autoanálise
não foi um tratamento pela fala, mas pela escrita.
Seu conteúdo figura nas 301 cartas que Freud enviou a Fliess entre 1887 e 1904. Ora, essa
correspondência foi alvo de uma censura e, mais tarde, de um escândalo. Publicada pela
primeira vez em 1950, por Marie Bonaparte, Ernst Kris e Anna Freud, sob o título de O
nascimento da psicanálise, continha somente 168 cartas, das quais apenas 30 estavam completas.

Faltavam, portanto, 133, que só seriam publicadas em 1985, por ocasião da primeira
edição não expurgada, feita em língua inglesa por Jeffrey Moussaieff Masson. 
Sob esse aspecto, o estudo da auto-análise significação, foi um dos grandes desafios da
historiografia* freudiana, primeiramente oficial, com os trabalhos de Ernest Jones e Didier
Anzieu, depois acadêmica, com Ola Andersson e Henri F. Ellenberger, e por fim revisionista,
com a elucidação que Frank J. Sulloway fez dos empréstimos que Freud tomou de Fliess.
Foi Jones quem popularizou, em 1953, o termo auto-análise. Ele fez de Fliess um falso
estudioso, demoníaco e iluminado, que nunca produziu nada de interessante. Quando a Freud, transformou-o num verdadeiro herói da ciência, capaz de inventar tudo sem nada dever a sua época. E, para explicar o amor desmedido que esse deus nutria por Satã, entregou-se a uma interpretação psicanalítica das mais ortodoxas: Fliess teria ocupado junto a Freud o lugar de um sedutor paranoico e de um substituto paterno, do qual este último se haveria desfeito valentemente, através de um “trabalho hercúleo” que lhe permitiu ter acesso à independência e à verdade. Essa interpretação foi retirada da famosa declaração de Freud a Sandor Ferenczi: “Tive êxito onde o paranóico fracassa.” Com  algumas variações, ela foi adotada durante uns vinte anos pela comunidade freudiana.

Em 1959, Didier Anzieu a criticou, avaliando a auto-análise de Freud à luz de seus trabalhos
posteriores e, em particular, de A interpretação dos sonhos. Em seguida, os trabalhos da historiografia erudita modificaram radicalmente a idéia que se podia ter desse episódio. Ellenberger fez dele um momento essencial de toda forma de “neurose criadora” e, depois dele, Sulloway foi o primeiro, em 1979, a mudar de campo e estudar a auto-análise de Freud como o episódio dramático de uma rivalidade científica entre dois homens. Não obstante, numa perspectiva continuísta, ele rejeitou a ideia de que Freud houvesse inventado uma nova teoria da sexualidade e da bissexualidade e fez dele um herdeiro da doutrina fliessiana.
Marcado pela tradição francesa da história das ciências (a de Alexandre Koyré), Jacques
Lacan rompeu radicalmente com a concepção de Jones em 1953. Num belo comentário sobre o sonho “da injeção de Irma”, e sem conhecer a história de Emma Eckstein*, ele mostrou que na origem de uma descoberta há sempre uma de Freud, de sua duração, seu conteúdo e sua dúvida fundadora. Nenhum estudioso passa subitamente da “falsa” para a “verdadeira” ciência, e toda grande descoberta é tão somente a história de um  encaminhamento dialético em que a verdade está intimamente misturada ao erro. Essa foi também a tese de Jean-Paul Sartre em Le Scénario Freud, postumamente publicado.
Numa perspectiva idêntica, Octave Mannoni substituiu o termo auto-análise, em 1967,
pela expressão, mais exata, análise originária.

Sublinhou o lugar ocupado pelas teorias fliessianas na doutrina de Freud e mostrou que a
relação entre os dois homens foi a expressão de uma divisão complexa entre o saber e o delírio, entre a ciência e o desejo.







Fonte: Dicionário de psicanálise

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